quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

FELIZ 2015... COM POESIA!

AINDA

Dizer urgente do amor ao amante.
Antes que se quebre o tempo.
E os ouvidos, dissolvidos na terra,
não apreciem mais a carícia das sílabas.
Antes que as mãos, tímidas de dar,
cessem de vez os movimentos,
e todos os gestos virem ossos.
Dizer urgente ao amigo o valor do vínculo.
Que só o amigo costura.
Só o amigo, cozeduras, cozimentos, cerziduras.
Que só o amigo estanca os sangramentos.
Dizer urgente do amor, sem resistências.
Antes que a língua, de súbito, se cale.
E o amor, preso por reticências, maledicências,
medos, mágoas, role pelos ralos.
Antes que o amor, quedado pela foice,
Faça da palavra não dita, eterno açoite.

Carmen Moreno (Livro LOJA DE AMORES USADOS)


quarta-feira, 29 de outubro de 2014

PALESTRA DE CARMEN MORENO NO TEATRO GLAUCIO GILL - XVI FESTIVAL CARIOCA DE POESIA

Cenas das palestras 

da poeta e escritora Carmen Moreno

e da tradutora e poeta Helena Ferreira

ontem, (28/10/2014), no 

XVI FESTIVAL CARIOCA DE POESIA,

coordenado pelo grupo Poesia Simplesmente, 

no teatro Glaucio Gill. 


“OLHAR-SE: O SER E O SALTO 

– CRESCIMENTO E LIBERTAÇÃO”


(Leia, abaixo, o texto de Carmen Moreno)


Carmen Moreno - Foto: Marcelo Ribeiro


Carmen Moreno - Foto: Marcelo Ribeiro

Carmen Moreno

Carmen Moreno e Helena Ferreira


Carmen Moreno e Helena Ferreira


Plateia - Teatro Glaucio Gill

Grupo Poesia Simplesmente
Delayne Brasil, Angela Carrocino, Laura Esteves e Sílvio Ribeiro de Castro

(Poesia, prosa, teatro, dança e cinema)


TEXTO DA PALESTRA:

Carmen Moreno


OLHAR-SE: 

O SER E O SALTO 

– CRESCIMENTO E LIBERTAÇÃO


“Conhece-te a ti mesmo” foi o legado que Sócrates nos deixou, ao qual não fizemos jus, mesmo após tantos séculos. A meu ver, por medo do desconhecido, pela grande disciplina necessária, e por ignorarmos o quanto seríamos mais felizes se puséssemos este preceito em prática.

Pretendemos melhorar o planeta, erradicar as guerras, a corrupção na política, suavizar as injustiças e diferenças sociais, eliminar os preconceitos, mas no plano global: através de leis, decretos, acordos ou tratados. No entanto, se não houver uma mudança corajosa no âmbito individual, quando cada um de nós se disponha a transformar seu mundo interior, suas atitudes, seus defeitos de caráter, quando cada um de nós se entregue à tarefa difícil, mas prazerosa, de localizar suas pequenas guerras particulares (muitas vezes concebidas como inofensivas) na família, no trabalho, nas ruas, suas palavras bélicas, suas mesquinharias afetivas e materiais, sua raiva não digerida, sua violência velada ou deflagrada, seu egoísmo difuso ou objetivo, sua competitividade desenfreada, sua arrogância, seu ego inflado ofuscando a vizinhança, seus “podres poderes”, como disse Caetano. Se não houver esta boa-vontade na esfera pessoal, nada será orgânica e definitivamente transformado no coletivo. Continuaremos culpando o outro pelas mazelas do Universo.

A psicologia nos ensina que temos um eu idealizado e um eu real. O idealizado nos conduz a enxergar o que mais combina com o bem-estar da nossa autoimagem. Com aquilo que introjetamos como aceito, certo, bom e belo. Afinal, precisamos ser amados! Meu Deus, o que não fazemos para enfiar nosso eu verdadeiro nesse pacote de exigências, na clausura da perfeição. Quantas mentiras nos contamos! Quantas ouvimos e repetimos, sem reflexão. Quase não há busca da essência.  Acreditamos nas historinhas e seguimos, felizes/infelizes, encaixadinhos nas forminhas de valores, ideais e conceitos alheios. Onde o salto? Quando a libertação? Quem somos? E novamente o filósofo nos responde: “Só sei que nada sei”.

Não há como fugir da dor de se ver para crescer.  Sem passar por ela, apenas estagnação. A dor de se ver, sem culpa ou chicote no olhar, é prazer e salto. Ver e mover-se. Modificar-se. Pois que evitar a si mesmo também é dor. E dor maior, porquanto o empenho de lutar para não ser o que se é, de esconder-se de si e da multidão, é sofrer o atrofiamento da alma. O imenso cansaço da produção de uma energia extra para a fuga inútil do espelho. Contudo, não se revelar também se faz necessário à sobrevivência, pois o inimigo existe além da ficção. No entanto, quando nos compreendemos de verdade, podemos escolher o que mostrar, quando e a quem.

A literatura e as artes em geral constroem uma ponte para o livre fluir desses “eus”. A imaginação é a louca da casa, como diz a escritora Rosa Montero. O olhar, o movimento inicial da obra artística. Privilegio a poesia como exemplo, já que somos duas poetas aqui neste palco, e temos tantos outros na plateia: o olhar que lançamos sobre nós, o outro, o Universo é a gestação do poema, parido depois, em forma. O olhar enviesado do poeta, que tantas vezes destoa, desalinha, desafina, na sinfonia nem sempre original e criativa do mundo. E mesmo depois do jorro do parto o poema não se finda. Precisa ser buscado na essência (conhecer-se), aparar-se, despir-se de falsidades, ingenuidades desnecessárias, precisa estar nu e forte para a vida. E ainda assim não estará pronto, pois o poeta o entregará ao mundo, a outros olhos que o multiplicarão em novas compreensões e lapidagens. Pronto estaria morto. E a morte não existe.

Enquanto busca a substância do poema, enquanto se lança sobre esta alma brotando do escuro, apalpando-a com a paixão do desapego, orando à palavra original para que encontre e traduza este ser, o poeta, na realidade, se procura, sem querer. A cada palavra descartada, substituída por outra mais fiel à emoção, ao pensamento, ao conceito da obra, o escritor despe-se dos medos de encontrar-se. Ao menos naquele raro instante da criação. O movimento lúdico da busca, descascada em símbolos, liberta o artista. Liberta-o da prisão cotidiana de olhar-se furtiva e passageiramente, conduzindo-o a um mergulho íntimo tanto mais profundo quanto mais se dedicar a conhecer a identidade de sua escritura.

Temos aí uma via de mão dupla, pois que, quanto mais o artista explora as metáforas do seu inconsciente, disponibilizando para si mesmo a abertura de um portal mais amplo à passagem dos seus fantasmas e sonhos, das suas imagens pessoais, mais os seus símbolos artísticos tornam-se generosos e singulares no momento da sua produção. Mais ele se torna senhor das sutilezas dos seus sentimentos, das suas palavras, ou quaisquer ferramentas artísticas do seu trabalho.

Nota da autora: A palestra foi concluída com um poema. O mesmo não será postado por estar inserido em livro inédito.

domingo, 14 de setembro de 2014

POEMA SOBRE FOTO DE CARMEN MORENO

POEMA DE COSTAS


Quem me vê de costas sabe mais que o espelho

(de ângulos parcos).

Quem me vê de costas o molejo, o dorso,

a lordose desafinando as vértebras,

os cachos castanhos dos cabelos

esfregando  vento nos ombros,

o ritmo dos passos, os calcanhares, o avesso.

Quem me vê de costas:

o vizinho, o inimigo, o amor,

o andante anônimo das ruas me conhecem

mais que meus olhos.

Meus olhos não sabem dos sinais das omoplatas,

de certos pelos íntimos,

da pinta da nuca, da cicatriz do cotovelo.

Quem me vê de costas, o fotógrafo.

A imagem que não reconheço sou eu no porta-retratos.

Quem me vê de costas tem revelações a fazer.

Mas minha alma, devoradora de limites,

minha alma, essa deusa de muitos olhos,

minha alma, sim, sabe de mim.

Carmen Moreno




sábado, 13 de setembro de 2014

Poema AMPARO - Carmen Moreno

*AMPARO

Rio, que Cristo alarga teus braços em turismo sem pão?

Tour por teus atalhos, asfaltos,

políticos – mãos ao alto, ladrão.

Que Cristo colore teus traços, benze teus dias,

cruza teus dedos em oração?

Rio, que Cristo sobe teus morros, colhe teu lixo,

samba teus pés de barracos, ampara teus barrancos,

sutura teus abismos...

Que Cristo fotografado afaga teu sorriso fraturado?

Rio, que Cristo afamado te estende a mão

– do cartão postal dourado?


*Carmen Moreno (Engenho Urbano – Rio 41 poetas), Org. Márcio Catunda, Oficina Editores.


sábado, 7 de junho de 2014

Parceria entre Carmen Moreno e o músico Sidney Mattos


Assista ao vídeo


LARANJA


Poema: Carmen Moreno

Música: Sidney Mattos

(Compositor, cantor, arranjador, musicoterapeuta, arte-educador e professor)


CLIQUE, ABAIXO:


LARANJA


Laranja, nunca o anonimato, o descanso,
o direito à sombra.
Difícil ofício de sempre acender, animar, exceder.
Telas de Frida e Van Gogh, versos do Boca Maldita,
matizes dos trigais, a dor do entardecer.
Nunca rios, balsa, bálsamo...
Laranja navios, queda d`água, arrebentação.
Nunca a chance de ser medo, sombra, solidão.
Laranja enfrentamento, ação.
Nunca blues, choro, boleros...
mas samba, forró, verão.
Nunca beco, silêncio, lamento,
mas berro, luzes, multidão.
Laranja, cor da fruta, faces do fogo, crônico aquecer.
Nunca a timidez do bege, o sossego do azul,
a unanimidade do branco... o conforto dos tons sem conflito.
Laranja, sempre o grito, delação de si, confissão.
Feições de um sol insone, a extroversão do breu.
Bravura de ser um amarelo extremado.


Carmen Moreno

domingo, 4 de maio de 2014

Resenha de Nonato Gurgel: Livro O Estranho de Carmen Moreno




O Estranho é o quinto livro de ficção da escritora carioca Carmem Moreno. A epígrafe de Clarice Lispector que abre o volume sugere a filiação da contista a uma linhagem literária que possui na autora de A Legião Estrangeira e em textos como Estranhos Estrangeiros, de Caio Fernando Abreu, dentre outros, seus precursores. A leitura dos oito contos (três deles premiados) confirma essa sugestão filial.

Carmem cria inusitados finais para estranhos personagens. Eles transitam principalmente por hospitais (“Depois da Queda”), abrigos psiquiátricos (“O Reencontro”) e sessões de análise (“O Corno”). Nesses cenários, um narrador contata o reino mineral (“O que eu chamava de carne e osso virou carne, osso e ferro.”), e subverte mitos como a queda e a espera. Este último mito, romanticamente lido como feminino, é relido por um homem que procura nos cenários provisórios e soturnos que o circundam, o melhor ângulo de digerir a paisagem; mesmo que seja esta paisagem o submundo hospitalar. “Depois da queda” é um texto pedagógico: leciona a regar, em meio ao cotidiano áspero e automatizado, pequenas promessas. Promessas que viram rezas que viram metas que viram sílabas que viram textos como “Dora”.

“Dora” é um conto detentor de dois prêmios. Nele, a miudeza das sílabas no papel picado anuncia, na sua fragmentação amassada, com quantos paus se faz uma relação afetiva cotidiana. A estratégia da carta, a cortante presença da ausência e a sequência de mulheres que engendram o texto – Rose, Dora, Júlia, Cândida.... – estruturam, nas cinco cenas da narrativa, um pequeno tratado sobre a traição. Possuída por um dos mais moventes pecados capitais – a raiva – e com um olhar habituado a batizar entranhas, a narradora frequenta mini temporadas infernais numa travessia que vai da claridade ao breu. São falas miúdas. Frases que fariam arrepiar os filhos de René Descartes, para quem corpo e alma são lidos como coisas distintas. Diz a narrativa: “...uma lembrança congela meu estômago” ou “Não penso, não intuo. Sou bruta.”. Essa sintaxe seca e cortante dá o tom; embora eu sinta, neste conto onde a raiva é o principal combustível, saudades de uma escrita ainda mais alegórica e antropofágica, como no Pau... e nos biscoitos bruscos de Oswald de Andrade ou nas luvas de Ana C em seu belíssimo A teus pés.

Em “O Reencontro” Julia inscreve a dança da loucura. Pela ótica do afeto e da amizade, ela narra como Mira vai perdendo o riso e o ritmo diários, restando precária a própria respiração (aliás, o ar, seus fluxos, seus ritmos – ou sua falta – é um dos “elementos-personagens” marcantes em O estranho). Essa narrativa denota a opressão linguística que jaz latente nas relações, sejam elas entre irmãos, amigos ou amantes. Relações regidas por uma lógica silenciosa, geralmente afetiva e perversa, que engendra e ornamenta uma linguagem na qual a sedução e seus desvios anunciam o que de fascista e autoritário compõe o discurso patrocinador de quedas.

Um dos mais belos finais do livro encontra-se em “O Estranho”. Neste texto, João é um motorista em quem a vida passou a perna. Isso se dá numa velocidade na qual a crueldade faz dançar os que tentam abreviar os roteiros cotidianos que a vida propõe, traça. A autora demonstra mestria ao virilizar as vozes de um dos personagens desse conto e da narrativa seguinte: “A Dor”. Aos trinta e oito anos um homem petrifica-se. Desejante de um “grande fato”, ele tem pressa. Seus ritmos não escondem a sombra que habita sua face. O discurso de morte, desculpas, perdão e dor ganha musicalidade na medida em que sua confissão fere a mulher, despertando-lhe um intenso prazer.

São assim os personagens de Carmem Moreno: seres movidos pelo desejo de captar o instante, acionar a senha que o devir anuncia, de ouvido atento ao sussurro que clariceanamente emana dos fatos; de olho no futuro armado logo ali, ao redor (“O espelho da outra”). Embora, como nos contos de Caio, trata-se às vezes de uma narrativa do olhar invisível: um olho que vê, mas nem sempre se deixa ver.

Nonato Gurgel (Professor de Teoria Literária na Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisador)


Resenha extraída do Site Arquivos e Formas (Textos de Nonato Gurgel publicados (1991 - 2011) em livros, revistas, jornais, sites virtuais, eventos acadêmicos e culturais).

quarta-feira, 23 de abril de 2014

O que continua...

Foto: Delayne Brasil


DA MORTE

Ninguém parte: aparta-se de nós
apenas o palpável.
Perde-se a casca densa do amado ser.
Seus sonhos, mirados do Alto,
a terra não morde.
Ninguém parte: perde-se
a vestimenta visível do amigo,
que o tempo cala e serena.
Sobre a qual vertemos
nosso pranto de algemas.

Livro Loja de Amores Usados (poemas), Carmen Moreno



domingo, 13 de abril de 2014

Poema de Carmen Moreno para o amigo Yan Michalski: teatrólogo, crítico teatral e ensaísta


Homenagem


YAN MICHALSKI

Tatuado de dramas
(enredo inquietante),
pequenos olhos visionários.
Burila sobre a folha a fértil bofetada do palco.
Hábil, habilita a palavra a driblar ditaduras:
nos anos de gesso, oxigena a mordaça da cena.
Cúmplice discreto do ato,
destrança tramas com sangue de ator que encena.
Espião benevolente,
transpõe as cortinas do olhar que vê e não pulsa.
Pulsos sobre a mesa, pinta a página branca.
(Ambicioso coração beijando o belo).

Livro Loja de Amores Usados, Carmen Moreno

sexta-feira, 4 de abril de 2014

"A solidão é uma gilete invisível. Talha fundo, mas não sangra..." (Carmen Moreno)


ESPELHO DA OUTRA

Carmen Moreno

Ela está só. Não uma solidão entregue, assumida por ombros, mãos e corpo. Mas uma solidão maquiada. Ao menos é assim que a observo, da mesa em frente, num ângulo que me privilegia cada minúcia de seus gestos. Uma preta, de curvas marcadas pela justeza da lycra cinza, que lhe acomoda bem o corpo. Decote de umbigos! Solta os cabelos sobre os ombros, sacudindo uns cachos brilhantes - que fantasio serem postiços. Está só, a mulher, embora compartilhe a mesa com três musculosos estrangeiros.

Comeria apenas um sanduíche e não tomaria o segundo chope, caso a cena não me inquietasse tanto. Os três alemães conversam na língua que nos exclui. A mim e a ela. Também me sinto à margem, pois minha curiosidade não está sendo atendida. Embora minha imaginação, grata pelo desconhecimento total da conversa, possa fluir.

            
Apenas os três homens conversam. Suas palavras, olhares e movimentos desenham um triângulo rígido e impenetrável, que alija a mulher de qualquer participação. Quase não há pausa. A única vez em que ela tenta criá-la, o homem de olhos escuros e tatuagens nos braços a interrompe com uma palavra incompreensível - talvez para nós duas - prosseguindo, então, seu diálogo. Quase quarenta minutos sem que alguém, além de mim, olhe para ela. Por segundos, ao menos.

          
Às vezes riem, contrariando de forma gritante suas expressões fechadas por bigodes. Ela os acompanha, quase me iludindo de que se integra à conversa. Em seguida, percebo, ou fantasio, que seu riso é apenas uma tentativa de contato. Como um movimento de toque que se arrepende no ar.

Por duas vezes ela se dirige ao homem de óculos, sentado ao seu lado esquerdo: “Vamos?”. Ele balança a cabeça afirmativamente. E, sem torcer o pescoço para olhá-la, prossegue a conversa.

Cada vez mais esta noite me parece ficcional. Como uma pessoa pode ser ignorada, durante tanto tempo, por três outras com as quais divide a mesma mesa de bar?

Tento entender o que me prende àquela situação que, afinal, posso estar inventando, num surto de gratuita compaixão. Por que insisto que a mulher está desconfortável, onde encontrei os ingredientes de abandono para temperar esta cena... O que há de meu neste prato? Não, não é fantasia, a mulher está só. Uma solidão da qual não se dá conta, cada vez mais evidente à minha vidência involuntária.

Amassa contra o mármore da mesa um maço de cigarros vazio, largando-o em seguida. Logo recupera o brinquedo, fazendo-o saltar entre as mãos, fingindo distrair-se. Cansada, bebe um pouco mais o guaraná da lata que, após o último gole, passa a esmagar também, aos poucos, talvez temendo esgotar de vez o novo passatempo. Olha os passantes. Acompanha um ciclista até a curva da esquina. Ajeita-se melhor na cadeira, busca rostos no bar, sem fixar-se em nenhum. Ocorre de nossos olhos esbarrarem-se: eu anônima, ela protagonista. Ela sorri, fazendo-me qualquer breve comentário, que o vozerio do bar me impede de ouvir. Esboço apressadamente uma expressão interrogativa, e ela já não mais me vê. Fantasio que me fizera alguma queixa, apesar do sorriso. 

O ruivo menos atlético surpreende-me, de repente, quando põe os óculos sobre a mesa e chama o garçom: em português! Mantido o sotaque, a pronúncia é clara. Comunica-se bem com o funcionário. Então, ele fala português... e durante mais de uma hora não trocou sequer uma frase com ela. Em nenhum idioma. Não consigo me desprender do bar, curiosa por compreender nuanças do quadro que, cada vez mais, incomoda-me. E atrai.

Então tenho certeza de que estamos ligadas. Narradora e protagonista. Cada qual embalada por seu desamparo. O garçom traz apenas o sanduíche do homem de óculos. Observo a lata, destruída em sua mão, certa de que ela quer outro refrigerante. O louro da esquerda entrega-lhe umas notas, dizendo outra palavra indecifrável. A mulher levanta-se e atravessa a rua. Tento adivinhar aonde irá. Entra no botequim em frente. Troca o dinheiro por um pacote. Identifico que é de cigarros. Ela foi comprar, para eles, um pacote de cigarros! A deselegância se revela em músculos.

Penso que ela talvez não tenha vocação. Estranho a palavra, de imediato, mas insisto na ideia de que ela não tem o poder natural das prostitutas. E, novamente, rejeito minha conclusão. O que seria esse poder natural das prostitutas, senão o que meus olhos sempre viram à distância? Inicio uma série de racionalizações, que pretendem abalar meu protecionismo com relação àquela mulher que, afinal, escolheu estar ali!

Ela volta, sorrindo pra ninguém, com o pacote de cigarros. Estende a mão para o homem de óculos, que guarda o troco, ainda sem olhá-la. Por que a manteriam ali, por tanto tempo, prisioneira daquele descaso? Penso em Rui. Por que me mantenho por tanto tempo prisioneira do seu descaso? Imagino que, talvez, o homem de óculos seja seu amante. Mais tarde, quando seus corpos se tocarem, ele a beijará? Finalmente, na madrugada, alguma linguagem os unirá?

Rui, que não vejo há três meses, toma de vez meu pensamento. Resolvo pedir a conta. Caminho até meu apartamento, a duas quadras dali. Procuro a chave entre as bugigangas da bolsa, abro a porta e, antes mesmo de fechá-la, aperto o botão da máquina. Nenhuma novidade - as mesmas mensagens requentadas do chefe e da velha amiga. Meu socorro imediato é outro botão: personagens de novela preenchem a sala de imagens e sons sem importância, mas úteis. Tranco a porta. Tranco-me. A solidão é uma gilete invisível. Talha fundo, mas não sangra...

  

*Livro Sutilezas do Grito (contos, Rocco) - Carmen Moreno 

terça-feira, 1 de abril de 2014







*SOB A SEMELHANTE SUPERFÍCIE             

Carmen Moreno

           Não foram as suas cuecas, invariavelmente espalhadas pelo quarto. Nem o bar dos sábados com os amigos. Não foi a última briga nem a soma de todas. Uma incógnita nos impede o acesso ao que nos une a uma pessoa e nos afasta de outra. Muitos nós nesses vinte anos de laços. Estou apaixonada. Neste momento procuro consultar o que sinto ao escrever-lhe. Dois nítidos sentimentos se sobrepõem, em contraste: tristeza antecipada, por saber que vou magoá-lo, e igual prazer por saber que vou magoá-lo. Não pense, por isso, que minha paixão é um tolo movimento de revanche. Houve tantas chances de vingança que já teria me apossado de alguma, se quisesse.

            Você está agora no futebol dos domingos. Chegará suado, músculos lustrados, olhos foscos. Seus olhos não brilham mais. Quem sabe nos dribles do atleta... mas no cotidiano da casa, nos raros momentos em que se esbarram com os meus, não vejo mais nenhum brilho. Certamente, você me vê também assim, opaca e silenciosa, carregando pelos cômodos uma incômoda mudez. Não, talvez meu silêncio não signifique incômodo para você. Lembro-me de que, numa antiga discussão, você deixou claro o desagrado por minha mania de discutir os problemas à exaustão. Prefere a superfície. Eu, o que se esconde nos porões. Isso não me faz melhor. Às vezes, meu bem-intencionado mergulho nas águas turvas da relação era um simulacro. Um instrumento para vê-lo espernear com os meus porquês, jogado num lodo interior de explicações, tentando apoiar-se de novo na bengala da sua objetividade masculina. No início, era fundamental vê-lo prático e dono de todas as certezas. O mundo subjugado a sua destreza viril, que tramitava entre pagar as contas e discorrer sobre todos os assuntos. Minha geração digeriu sem muitas queixas os temperos mais indigestos do casamento. Minha mãe reforçava que eu não deveria exigir tanto de você. Que os homens não eram muito detalhistas. Esforçava-me, mas precisava esmiuçar a emoção, compreender o avesso das suas meias palavras.

          Você inventou a ideal simplificação dos temas que eu propunha: colava a boca na minha, calando-me num beijo que nos levava a outras linguagens. Não tentaria mentir, negando a excitação desses desvios de trajeto. Calávamos um discurso para dar lugar a outro menos contraditório ou combativo. Até então, não havia tropeços nesse trecho da nossa comunicação. Ao contrário, absoluta comunhão. Mas o recurso se desgastou e acabou sendo um meio de evitar que tocássemos terrenos desagradáveis. Uma fuga, um ópio, um esconderijo. Calar-me com seu corpo. Acender-me para apagar-me. Uma arma. Atualmente em desuso. Sua sedução há muito não incide sobre mim. Você a espalhou pelas noturnas reuniões do time. Multiplicavam-se os encontros com a equipe, conduzindo sua sedução por caminhos novos. Até que, numa noite insone, resolvi descobrir o que insistia em negar. No clube, você se encontrava com sua motivação loura. Cabelos falsamente claros, formas talhadas - visão possível de quem observa à distância. Aproximar-me seria o fim. Não desejava que um ponto definitivo interrompesse meus dez anos de casamento. Aproximar-me seria violar por completo minha teimosia amorosa. Observei os enamorados de longe.

          Em casa, acuado, tentou banalizar o romance: Não era sério. Terminaria no dia seguinte. Tudo, menos me perder. Os homens eram assim, não resistiam às tentações. Enfim, todos os chavões saltavam da cartola. Como um mágico tentando animar a plateia com o velho número dos pombos. Acreditei no truque do ilusionista. Mariana era uma adolescente próxima. Racionalizei a importância de um pai presente, uma família ordenada. Mas o caos se instalara. Na verdade, tinha pânico de estar só e desprotegia a imagem de nossa filha, como pretexto.

            Estou apaixonada. Não há nada que me assalte esse amor. A não ser que ele próprio se esgote no seu tempo. E quando um dia acontecer o corte, saberei entender que a vida se renova em morte. Aos quarenta, não estou resignada. Mas tenho forças para me amar além do amor que possa receber do amante. Você não me espera assim. Ainda ontem falava como se todos os rumos da nossa vida conjugal só pudessem ser pilotados por você. Anunciou uma viagem de férias para o sítio, que fará sozinho. Discorreu sobre a importância das férias conjugais, num tom de quem se desculpa, de quem pede para ser perdoado. Eu, ouvinte silenciosa, tecia minha trama romântica como um trunfo, um segredo saboreado. Há muito tempo faço do silêncio meu estilingue, meu alfinete. Deixei que clamasse por sua solidão criativa, que usasse até argumentos, como: "A distância revigora a relação". Sabemos que entre nós a distância já se instalou, irrevogável.

            Há seis meses entrego-me a outra pessoa. Inteira. Mariana está casada. Meu coração se desamarra, aos poucos. Não imaginei que pudesse me deparar com tanta novidade. Aprendemos que, nesta idade, os afetos se resfriam e os sonhos despencam com os seios. Além do mais, sempre estranhei que o amor surgisse de uma fonte aparentemente sem mistérios. Que o desejo pudesse saltar assim, por um corpo tão familiar em desenhos e cheiros... em textura. Teorizava sobre a importância das diferenças. Os contrastes mais nítidos seriam, para mim, os que me instigariam o desejo. Desconhecia as sutis diferenças, as que apenas intuímos sob a semelhante superfície. Quando acaricio seu corpo, tão igual ao meu, toco regiões inusitadas da minha feminilidade. Quando nossas saias se confundem sou mais que uma mulher. Sou tudo que não tem nome. Desaprendo o que aprendi. Contrario o que ensinei. Sou apresentada a mim quando ela come meus traços com suas pupilas amorosas. Seguindo seu desejo sou meu desejo. E passo a querer nós duas. Ver-me, assim, por sua ótica de amante, é desvelar em mim o que, sozinha, seria cegueira.

            Refeito do susto, certamente você irá questionar o que um homem teria deixado de dar a uma mulher para levá-la a procurar outra. O que teria sido insuficiente no seu desempenho viril. Sempre você como eixo de todas as coisas. Respondo, antecipadamente, pois exercito, nesta carta, uma crueza necessária: o que nos afasta de alguém são sempre excessos e faltas. Nossos excessos e nossas faltas levaram você às amantes, e a mim, ao amor. Não. Talvez a primeira tenha sido amada. A loura falsária, a que "não era sério". Porque foi difícil terminar no dia seguinte. O dia seguinte estendeu-se por meses, quem sabe um ano, pelas pistas que testavam minha reincidente cegueira.

            Estou apaixonada. Levo parte das roupas. Esta é apenas uma pausa para ordenar-me. Ah... a buzina! Volto para esmiuçarmos juntos minha partida. Para que nossos olhos se enfrentem ao menos no fim. A buzina! Tenho que ir. O chá está quente sobre o fogão.


  
* Livro Sutilezas do Grito (Rocco).


sexta-feira, 28 de março de 2014


CARÍCIA OU DESAMPARO*
de
Carmen Moreno


Pedra ou ponte, a palavra costura ou aparta-me do próximo.
No papel, deitada sobre a página, deflagra-me o universo.
O meu e o do outro.
No livro, a palavra não é ímpeto como no improviso da fala.
No livro, revisada, escolhida, oferece-me apenas o perigo da beleza.
Que já é bárbaro!
O perigo de me impelir à ousada viagem de ver.
Ver-me, ver aquele que me escreve,
Ver aqueles que são criados por quem me escreve.
O perigo de ver os mundos fervilhados nas folhas...
e não ser mais a mesma.
No livro, a palavra só ameaça 
porque me convida a sair do lugar –- a mover-me.
A palavra, estirada na página, só pode me oferecer o risco do voo.
E o risco de toda viagem, por mar, terra ou verbo, é sempre o voo.
Portanto, a palavra burilada do poeta,
a verve, vertida em sílabas, do escritor,
é sempre bem-vinda, mesmo quando ameaça.
Sobretudo quando ameaça!
É brinquedo, mesmo quando bélica.
Plástica, mesmo quando revela a feiura do mundo.
Salvadora, mesmo quando mata.
A palavra, pregada nas páginas dos livros,
em aparente imobilidade, está viva.
Contudo, proferida, às vezes agrupa-se tão ágil,
que não há tempo de retocar-lhe o rosto.
E a verdade brota, abrupta.
E a mentira enfeita-se, convicta.
Quando proferida, sua ameaça tem natureza diversa
da que deleitamos no leito da página.
Falada, a palavra encorpa-se, cálida ou bélica.
E é carícia ou desamparo.
No entanto, uma vez expelida,
segue seu curso reto, irrevogável.
E atira sem revólver, talha sem sangue...
Mata sem vestígios.
Mas também tem o poder de socorrer,
com sua saliva salvadora,
qualquer um de nós que, na dor,
encontre alguém com o dom de usá-la como abraço.
Qualquer um de nós que saiba valer-se de sua sonoridade
para adoçar a língua e salvar alguém. Para salvar-se.
A palavra, quando fala, expulsa da boca um corpo invisível.
Quando fala a palavra é carne, é gesto.
Mas quando cala também é forma viva.
Disfarçada de silêncio, no fundo do pensamento,
às vezes grita seu medo de exprimir-se, parir-se.
Grita seus segredos, seu lixo orgânico e suas benfeitorias.
Viva, no caos do pensamento, a palavra inventa o futuro,
retoca o passado, e ensaia o presente –- para vivê-lo.
Mas, neste trajeto do falar ao ouvir, pode gerar breu ou brilho,
conforme o berço preparado para acolhê-la.
Quem ouve é sempre co-autor do que é dito.
A tradução de quem ouve, seu universo de significados e imagens,
sempre ajuda a escrever paz ou guerra.
No entanto, há de chegar o dia em que,
libertos de escrúpulos e medos,
domados pelo afeto, usaremos bem mais a palavra como beijo.

* Livro Loja de Amores Usados de Carmen Moreno