quarta-feira, 23 de abril de 2014

O que continua...

Foto: Delayne Brasil


DA MORTE

Ninguém parte: aparta-se de nós
apenas o palpável.
Perde-se a casca densa do amado ser.
Seus sonhos, mirados do Alto,
a terra não morde.
Ninguém parte: perde-se
a vestimenta visível do amigo,
que o tempo cala e serena.
Sobre a qual vertemos
nosso pranto de algemas.

Livro Loja de Amores Usados (poemas), Carmen Moreno



domingo, 13 de abril de 2014

Poema de Carmen Moreno para o amigo Yan Michalski: teatrólogo, crítico teatral e ensaísta


Homenagem


YAN MICHALSKI

Tatuado de dramas
(enredo inquietante),
pequenos olhos visionários.
Burila sobre a folha a fértil bofetada do palco.
Hábil, habilita a palavra a driblar ditaduras:
nos anos de gesso, oxigena a mordaça da cena.
Cúmplice discreto do ato,
destrança tramas com sangue de ator que encena.
Espião benevolente,
transpõe as cortinas do olhar que vê e não pulsa.
Pulsos sobre a mesa, pinta a página branca.
(Ambicioso coração beijando o belo).

Livro Loja de Amores Usados, Carmen Moreno

sexta-feira, 4 de abril de 2014

"A solidão é uma gilete invisível. Talha fundo, mas não sangra..." (Carmen Moreno)


ESPELHO DA OUTRA

Carmen Moreno

Ela está só. Não uma solidão entregue, assumida por ombros, mãos e corpo. Mas uma solidão maquiada. Ao menos é assim que a observo, da mesa em frente, num ângulo que me privilegia cada minúcia de seus gestos. Uma preta, de curvas marcadas pela justeza da lycra cinza, que lhe acomoda bem o corpo. Decote de umbigos! Solta os cabelos sobre os ombros, sacudindo uns cachos brilhantes - que fantasio serem postiços. Está só, a mulher, embora compartilhe a mesa com três musculosos estrangeiros.

Comeria apenas um sanduíche e não tomaria o segundo chope, caso a cena não me inquietasse tanto. Os três alemães conversam na língua que nos exclui. A mim e a ela. Também me sinto à margem, pois minha curiosidade não está sendo atendida. Embora minha imaginação, grata pelo desconhecimento total da conversa, possa fluir.

            
Apenas os três homens conversam. Suas palavras, olhares e movimentos desenham um triângulo rígido e impenetrável, que alija a mulher de qualquer participação. Quase não há pausa. A única vez em que ela tenta criá-la, o homem de olhos escuros e tatuagens nos braços a interrompe com uma palavra incompreensível - talvez para nós duas - prosseguindo, então, seu diálogo. Quase quarenta minutos sem que alguém, além de mim, olhe para ela. Por segundos, ao menos.

          
Às vezes riem, contrariando de forma gritante suas expressões fechadas por bigodes. Ela os acompanha, quase me iludindo de que se integra à conversa. Em seguida, percebo, ou fantasio, que seu riso é apenas uma tentativa de contato. Como um movimento de toque que se arrepende no ar.

Por duas vezes ela se dirige ao homem de óculos, sentado ao seu lado esquerdo: “Vamos?”. Ele balança a cabeça afirmativamente. E, sem torcer o pescoço para olhá-la, prossegue a conversa.

Cada vez mais esta noite me parece ficcional. Como uma pessoa pode ser ignorada, durante tanto tempo, por três outras com as quais divide a mesma mesa de bar?

Tento entender o que me prende àquela situação que, afinal, posso estar inventando, num surto de gratuita compaixão. Por que insisto que a mulher está desconfortável, onde encontrei os ingredientes de abandono para temperar esta cena... O que há de meu neste prato? Não, não é fantasia, a mulher está só. Uma solidão da qual não se dá conta, cada vez mais evidente à minha vidência involuntária.

Amassa contra o mármore da mesa um maço de cigarros vazio, largando-o em seguida. Logo recupera o brinquedo, fazendo-o saltar entre as mãos, fingindo distrair-se. Cansada, bebe um pouco mais o guaraná da lata que, após o último gole, passa a esmagar também, aos poucos, talvez temendo esgotar de vez o novo passatempo. Olha os passantes. Acompanha um ciclista até a curva da esquina. Ajeita-se melhor na cadeira, busca rostos no bar, sem fixar-se em nenhum. Ocorre de nossos olhos esbarrarem-se: eu anônima, ela protagonista. Ela sorri, fazendo-me qualquer breve comentário, que o vozerio do bar me impede de ouvir. Esboço apressadamente uma expressão interrogativa, e ela já não mais me vê. Fantasio que me fizera alguma queixa, apesar do sorriso. 

O ruivo menos atlético surpreende-me, de repente, quando põe os óculos sobre a mesa e chama o garçom: em português! Mantido o sotaque, a pronúncia é clara. Comunica-se bem com o funcionário. Então, ele fala português... e durante mais de uma hora não trocou sequer uma frase com ela. Em nenhum idioma. Não consigo me desprender do bar, curiosa por compreender nuanças do quadro que, cada vez mais, incomoda-me. E atrai.

Então tenho certeza de que estamos ligadas. Narradora e protagonista. Cada qual embalada por seu desamparo. O garçom traz apenas o sanduíche do homem de óculos. Observo a lata, destruída em sua mão, certa de que ela quer outro refrigerante. O louro da esquerda entrega-lhe umas notas, dizendo outra palavra indecifrável. A mulher levanta-se e atravessa a rua. Tento adivinhar aonde irá. Entra no botequim em frente. Troca o dinheiro por um pacote. Identifico que é de cigarros. Ela foi comprar, para eles, um pacote de cigarros! A deselegância se revela em músculos.

Penso que ela talvez não tenha vocação. Estranho a palavra, de imediato, mas insisto na ideia de que ela não tem o poder natural das prostitutas. E, novamente, rejeito minha conclusão. O que seria esse poder natural das prostitutas, senão o que meus olhos sempre viram à distância? Inicio uma série de racionalizações, que pretendem abalar meu protecionismo com relação àquela mulher que, afinal, escolheu estar ali!

Ela volta, sorrindo pra ninguém, com o pacote de cigarros. Estende a mão para o homem de óculos, que guarda o troco, ainda sem olhá-la. Por que a manteriam ali, por tanto tempo, prisioneira daquele descaso? Penso em Rui. Por que me mantenho por tanto tempo prisioneira do seu descaso? Imagino que, talvez, o homem de óculos seja seu amante. Mais tarde, quando seus corpos se tocarem, ele a beijará? Finalmente, na madrugada, alguma linguagem os unirá?

Rui, que não vejo há três meses, toma de vez meu pensamento. Resolvo pedir a conta. Caminho até meu apartamento, a duas quadras dali. Procuro a chave entre as bugigangas da bolsa, abro a porta e, antes mesmo de fechá-la, aperto o botão da máquina. Nenhuma novidade - as mesmas mensagens requentadas do chefe e da velha amiga. Meu socorro imediato é outro botão: personagens de novela preenchem a sala de imagens e sons sem importância, mas úteis. Tranco a porta. Tranco-me. A solidão é uma gilete invisível. Talha fundo, mas não sangra...

  

*Livro Sutilezas do Grito (contos, Rocco) - Carmen Moreno 

terça-feira, 1 de abril de 2014







*SOB A SEMELHANTE SUPERFÍCIE             

Carmen Moreno

           Não foram as suas cuecas, invariavelmente espalhadas pelo quarto. Nem o bar dos sábados com os amigos. Não foi a última briga nem a soma de todas. Uma incógnita nos impede o acesso ao que nos une a uma pessoa e nos afasta de outra. Muitos nós nesses vinte anos de laços. Estou apaixonada. Neste momento procuro consultar o que sinto ao escrever-lhe. Dois nítidos sentimentos se sobrepõem, em contraste: tristeza antecipada, por saber que vou magoá-lo, e igual prazer por saber que vou magoá-lo. Não pense, por isso, que minha paixão é um tolo movimento de revanche. Houve tantas chances de vingança que já teria me apossado de alguma, se quisesse.

            Você está agora no futebol dos domingos. Chegará suado, músculos lustrados, olhos foscos. Seus olhos não brilham mais. Quem sabe nos dribles do atleta... mas no cotidiano da casa, nos raros momentos em que se esbarram com os meus, não vejo mais nenhum brilho. Certamente, você me vê também assim, opaca e silenciosa, carregando pelos cômodos uma incômoda mudez. Não, talvez meu silêncio não signifique incômodo para você. Lembro-me de que, numa antiga discussão, você deixou claro o desagrado por minha mania de discutir os problemas à exaustão. Prefere a superfície. Eu, o que se esconde nos porões. Isso não me faz melhor. Às vezes, meu bem-intencionado mergulho nas águas turvas da relação era um simulacro. Um instrumento para vê-lo espernear com os meus porquês, jogado num lodo interior de explicações, tentando apoiar-se de novo na bengala da sua objetividade masculina. No início, era fundamental vê-lo prático e dono de todas as certezas. O mundo subjugado a sua destreza viril, que tramitava entre pagar as contas e discorrer sobre todos os assuntos. Minha geração digeriu sem muitas queixas os temperos mais indigestos do casamento. Minha mãe reforçava que eu não deveria exigir tanto de você. Que os homens não eram muito detalhistas. Esforçava-me, mas precisava esmiuçar a emoção, compreender o avesso das suas meias palavras.

          Você inventou a ideal simplificação dos temas que eu propunha: colava a boca na minha, calando-me num beijo que nos levava a outras linguagens. Não tentaria mentir, negando a excitação desses desvios de trajeto. Calávamos um discurso para dar lugar a outro menos contraditório ou combativo. Até então, não havia tropeços nesse trecho da nossa comunicação. Ao contrário, absoluta comunhão. Mas o recurso se desgastou e acabou sendo um meio de evitar que tocássemos terrenos desagradáveis. Uma fuga, um ópio, um esconderijo. Calar-me com seu corpo. Acender-me para apagar-me. Uma arma. Atualmente em desuso. Sua sedução há muito não incide sobre mim. Você a espalhou pelas noturnas reuniões do time. Multiplicavam-se os encontros com a equipe, conduzindo sua sedução por caminhos novos. Até que, numa noite insone, resolvi descobrir o que insistia em negar. No clube, você se encontrava com sua motivação loura. Cabelos falsamente claros, formas talhadas - visão possível de quem observa à distância. Aproximar-me seria o fim. Não desejava que um ponto definitivo interrompesse meus dez anos de casamento. Aproximar-me seria violar por completo minha teimosia amorosa. Observei os enamorados de longe.

          Em casa, acuado, tentou banalizar o romance: Não era sério. Terminaria no dia seguinte. Tudo, menos me perder. Os homens eram assim, não resistiam às tentações. Enfim, todos os chavões saltavam da cartola. Como um mágico tentando animar a plateia com o velho número dos pombos. Acreditei no truque do ilusionista. Mariana era uma adolescente próxima. Racionalizei a importância de um pai presente, uma família ordenada. Mas o caos se instalara. Na verdade, tinha pânico de estar só e desprotegia a imagem de nossa filha, como pretexto.

            Estou apaixonada. Não há nada que me assalte esse amor. A não ser que ele próprio se esgote no seu tempo. E quando um dia acontecer o corte, saberei entender que a vida se renova em morte. Aos quarenta, não estou resignada. Mas tenho forças para me amar além do amor que possa receber do amante. Você não me espera assim. Ainda ontem falava como se todos os rumos da nossa vida conjugal só pudessem ser pilotados por você. Anunciou uma viagem de férias para o sítio, que fará sozinho. Discorreu sobre a importância das férias conjugais, num tom de quem se desculpa, de quem pede para ser perdoado. Eu, ouvinte silenciosa, tecia minha trama romântica como um trunfo, um segredo saboreado. Há muito tempo faço do silêncio meu estilingue, meu alfinete. Deixei que clamasse por sua solidão criativa, que usasse até argumentos, como: "A distância revigora a relação". Sabemos que entre nós a distância já se instalou, irrevogável.

            Há seis meses entrego-me a outra pessoa. Inteira. Mariana está casada. Meu coração se desamarra, aos poucos. Não imaginei que pudesse me deparar com tanta novidade. Aprendemos que, nesta idade, os afetos se resfriam e os sonhos despencam com os seios. Além do mais, sempre estranhei que o amor surgisse de uma fonte aparentemente sem mistérios. Que o desejo pudesse saltar assim, por um corpo tão familiar em desenhos e cheiros... em textura. Teorizava sobre a importância das diferenças. Os contrastes mais nítidos seriam, para mim, os que me instigariam o desejo. Desconhecia as sutis diferenças, as que apenas intuímos sob a semelhante superfície. Quando acaricio seu corpo, tão igual ao meu, toco regiões inusitadas da minha feminilidade. Quando nossas saias se confundem sou mais que uma mulher. Sou tudo que não tem nome. Desaprendo o que aprendi. Contrario o que ensinei. Sou apresentada a mim quando ela come meus traços com suas pupilas amorosas. Seguindo seu desejo sou meu desejo. E passo a querer nós duas. Ver-me, assim, por sua ótica de amante, é desvelar em mim o que, sozinha, seria cegueira.

            Refeito do susto, certamente você irá questionar o que um homem teria deixado de dar a uma mulher para levá-la a procurar outra. O que teria sido insuficiente no seu desempenho viril. Sempre você como eixo de todas as coisas. Respondo, antecipadamente, pois exercito, nesta carta, uma crueza necessária: o que nos afasta de alguém são sempre excessos e faltas. Nossos excessos e nossas faltas levaram você às amantes, e a mim, ao amor. Não. Talvez a primeira tenha sido amada. A loura falsária, a que "não era sério". Porque foi difícil terminar no dia seguinte. O dia seguinte estendeu-se por meses, quem sabe um ano, pelas pistas que testavam minha reincidente cegueira.

            Estou apaixonada. Levo parte das roupas. Esta é apenas uma pausa para ordenar-me. Ah... a buzina! Volto para esmiuçarmos juntos minha partida. Para que nossos olhos se enfrentem ao menos no fim. A buzina! Tenho que ir. O chá está quente sobre o fogão.


  
* Livro Sutilezas do Grito (Rocco).