quarta-feira, 29 de outubro de 2014

PALESTRA DE CARMEN MORENO NO TEATRO GLAUCIO GILL - XVI FESTIVAL CARIOCA DE POESIA

Cenas das palestras 

da poeta e escritora Carmen Moreno

e da tradutora e poeta Helena Ferreira

ontem, (28/10/2014), no 

XVI FESTIVAL CARIOCA DE POESIA,

coordenado pelo grupo Poesia Simplesmente, 

no teatro Glaucio Gill. 


“OLHAR-SE: O SER E O SALTO 

– CRESCIMENTO E LIBERTAÇÃO”


(Leia, abaixo, o texto de Carmen Moreno)


Carmen Moreno - Foto: Marcelo Ribeiro


Carmen Moreno - Foto: Marcelo Ribeiro

Carmen Moreno

Carmen Moreno e Helena Ferreira


Carmen Moreno e Helena Ferreira


Plateia - Teatro Glaucio Gill

Grupo Poesia Simplesmente
Delayne Brasil, Angela Carrocino, Laura Esteves e Sílvio Ribeiro de Castro

(Poesia, prosa, teatro, dança e cinema)


TEXTO DA PALESTRA:

Carmen Moreno


OLHAR-SE: 

O SER E O SALTO 

– CRESCIMENTO E LIBERTAÇÃO


“Conhece-te a ti mesmo” foi o legado que Sócrates nos deixou, ao qual não fizemos jus, mesmo após tantos séculos. A meu ver, por medo do desconhecido, pela grande disciplina necessária, e por ignorarmos o quanto seríamos mais felizes se puséssemos este preceito em prática.

Pretendemos melhorar o planeta, erradicar as guerras, a corrupção na política, suavizar as injustiças e diferenças sociais, eliminar os preconceitos, mas no plano global: através de leis, decretos, acordos ou tratados. No entanto, se não houver uma mudança corajosa no âmbito individual, quando cada um de nós se disponha a transformar seu mundo interior, suas atitudes, seus defeitos de caráter, quando cada um de nós se entregue à tarefa difícil, mas prazerosa, de localizar suas pequenas guerras particulares (muitas vezes concebidas como inofensivas) na família, no trabalho, nas ruas, suas palavras bélicas, suas mesquinharias afetivas e materiais, sua raiva não digerida, sua violência velada ou deflagrada, seu egoísmo difuso ou objetivo, sua competitividade desenfreada, sua arrogância, seu ego inflado ofuscando a vizinhança, seus “podres poderes”, como disse Caetano. Se não houver esta boa-vontade na esfera pessoal, nada será orgânica e definitivamente transformado no coletivo. Continuaremos culpando o outro pelas mazelas do Universo.

A psicologia nos ensina que temos um eu idealizado e um eu real. O idealizado nos conduz a enxergar o que mais combina com o bem-estar da nossa autoimagem. Com aquilo que introjetamos como aceito, certo, bom e belo. Afinal, precisamos ser amados! Meu Deus, o que não fazemos para enfiar nosso eu verdadeiro nesse pacote de exigências, na clausura da perfeição. Quantas mentiras nos contamos! Quantas ouvimos e repetimos, sem reflexão. Quase não há busca da essência.  Acreditamos nas historinhas e seguimos, felizes/infelizes, encaixadinhos nas forminhas de valores, ideais e conceitos alheios. Onde o salto? Quando a libertação? Quem somos? E novamente o filósofo nos responde: “Só sei que nada sei”.

Não há como fugir da dor de se ver para crescer.  Sem passar por ela, apenas estagnação. A dor de se ver, sem culpa ou chicote no olhar, é prazer e salto. Ver e mover-se. Modificar-se. Pois que evitar a si mesmo também é dor. E dor maior, porquanto o empenho de lutar para não ser o que se é, de esconder-se de si e da multidão, é sofrer o atrofiamento da alma. O imenso cansaço da produção de uma energia extra para a fuga inútil do espelho. Contudo, não se revelar também se faz necessário à sobrevivência, pois o inimigo existe além da ficção. No entanto, quando nos compreendemos de verdade, podemos escolher o que mostrar, quando e a quem.

A literatura e as artes em geral constroem uma ponte para o livre fluir desses “eus”. A imaginação é a louca da casa, como diz a escritora Rosa Montero. O olhar, o movimento inicial da obra artística. Privilegio a poesia como exemplo, já que somos duas poetas aqui neste palco, e temos tantos outros na plateia: o olhar que lançamos sobre nós, o outro, o Universo é a gestação do poema, parido depois, em forma. O olhar enviesado do poeta, que tantas vezes destoa, desalinha, desafina, na sinfonia nem sempre original e criativa do mundo. E mesmo depois do jorro do parto o poema não se finda. Precisa ser buscado na essência (conhecer-se), aparar-se, despir-se de falsidades, ingenuidades desnecessárias, precisa estar nu e forte para a vida. E ainda assim não estará pronto, pois o poeta o entregará ao mundo, a outros olhos que o multiplicarão em novas compreensões e lapidagens. Pronto estaria morto. E a morte não existe.

Enquanto busca a substância do poema, enquanto se lança sobre esta alma brotando do escuro, apalpando-a com a paixão do desapego, orando à palavra original para que encontre e traduza este ser, o poeta, na realidade, se procura, sem querer. A cada palavra descartada, substituída por outra mais fiel à emoção, ao pensamento, ao conceito da obra, o escritor despe-se dos medos de encontrar-se. Ao menos naquele raro instante da criação. O movimento lúdico da busca, descascada em símbolos, liberta o artista. Liberta-o da prisão cotidiana de olhar-se furtiva e passageiramente, conduzindo-o a um mergulho íntimo tanto mais profundo quanto mais se dedicar a conhecer a identidade de sua escritura.

Temos aí uma via de mão dupla, pois que, quanto mais o artista explora as metáforas do seu inconsciente, disponibilizando para si mesmo a abertura de um portal mais amplo à passagem dos seus fantasmas e sonhos, das suas imagens pessoais, mais os seus símbolos artísticos tornam-se generosos e singulares no momento da sua produção. Mais ele se torna senhor das sutilezas dos seus sentimentos, das suas palavras, ou quaisquer ferramentas artísticas do seu trabalho.

Nota da autora: A palestra foi concluída com um poema. O mesmo não será postado por estar inserido em livro inédito.