SOB A SEMELHANTE
SUPERFÍCIE
Carmen Moreno
Não foram as suas cuecas, invariavelmente espalhadas pelo
quarto. Nem o bar dos sábados com os amigos. Não foi a última briga nem a soma
de todas. Uma incógnita nos impede o acesso ao que nos une a uma pessoa e nos
afasta de outra. Muitos nós nesses vinte anos de laços. Estou apaixonada. Neste
momento procuro consultar o que sinto ao escrever-lhe. Dois nítidos sentimentos
se sobrepõem, em contraste: tristeza antecipada, por saber que vou magoá-lo, e
igual prazer por saber que vou magoá-lo. Não pense por isso que minha paixão é
um tolo movimento de revanche. Houve tantas chances de vingança que já teria me
apossado de alguma, se quisesse.
Você está agora no futebol dos domingos. Chegará suado,
músculos lustrados, olhos foscos. Seus olhos não brilham mais. Quem sabe nos
dribles do atleta ... mas no cotidiano da casa, nos raros momentos em que se
esbarram com os meus, não vejo mais nenhum brilho. Certamente, você me vê
também assim, opaca e silenciosa, carregando pelos cômodos uma incômoda mudez.
Não, talvez meu silêncio não signifique incômodo para você. Lembro-me de que,
numa antiga discussão, você deixou claro o desagrado por minha mania de
discutir os problemas à exaustão. Prefere a superfície. Eu, o que se esconde
nos porões. Isso não me faz melhor. Às vezes, meu bem-intencionado mergulho nas
águas turvas da relação era um simulacro. Um instrumento para vê-lo espernear
com os meus porquês, jogado num lodo interior de explicações, tentando
apoiar-se de novo na bengala da sua objetividade masculina. No início, era
fundamental vê-lo prático e dono de todas as certezas. O mundo subjugado a sua
destreza viril, que tramitava entre pagar as contas e discorrer sobre todos os
assuntos. Minha geração digeriu sem muitas queixas os temperos mais indigestos
do casamento. Minha mãe reforçava que eu não deveria exigir tanto de você. Que
os homens não eram muito detalhistas. Esforçava-me, mas precisava esmiuçar a
emoção, compreender o avesso das suas meias palavras.
Você inventou a ideal simplificação dos temas que eu propunha:
colava a boca na minha, calando-me num beijo que nos levava a outras
linguagens. Não tentaria mentir, negando a excitação desses desvios de trajeto.
Calávamos um discurso para dar lugar a outro menos contraditório ou combativo.
Até então, não havia tropeços nesse trecho da nossa comunicação. Ao contrário,
absoluta comunhão. Mas o recurso se desgastou e acabou sendo um meio de evitar
que tocássemos terrenos desagradáveis. Uma fuga, um ópio, um esconderijo.
Calar-me com seu corpo. Acender-me para apagar-me. Uma arma. Atualmente em
desuso. Sua sedução há muito não incide sobre mim. Você a espalhou pelas
noturnas reuniões do time. Multiplicavam-se os encontros com a equipe,
conduzindo sua sedução por caminhos novos. Até que, numa noite insone, resolvi descobrir
o que insistia em negar. No clube, você se encontrava com sua motivação loura.
Cabelos falsamente claros, formas talhadas - visão possível de quem observa à
distância. Aproximar-me seria o fim. Não desejava que um ponto definitivo
interrompesse meus dez anos de casamento. Aproximar-me seria violar por
completo minha teimosia amorosa. Observei os enamorados de longe.
Em casa, acuado, tentou banalizar o romance: Não era sério.
Terminaria no dia seguinte. Tudo, menos me perder. Os homens eram assim, não
resistiam às tentações. Enfim, todos os chavões saltavam da cartola. Como um
mágico tentando animar a plateia com o velho número dos pombos. Acreditei no
truque do ilusionista. Mariana era uma adolescente próxima. Racionalizei a
importância de um pai presente, uma família ordenada. Mas o caos se instalara.
Na verdade, tinha pânico de estar só e desprotegia a imagem de nossa filha,
como pretexto.
Estou apaixonada. Não há nada que me assalte esse amor. A
não ser que ele próprio se esgote no seu tempo. E quando um dia acontecer o
corte, saberei entender que a vida se renova em morte. Aos quarenta, não estou
resignada. Mas tenho forças para me amar além do amor que possa receber do
amante. Você não me espera assim. Ainda ontem falava como se todos os rumos da
nossa vida conjugal só pudessem ser pilotados por você. Anunciou uma viagem de
férias, para o sítio, que fará sozinho. Discorreu sobre a importância das
férias conjugais, num tom de quem se desculpa, de quem pede para ser perdoado.
Eu, ouvinte silenciosa, tecia minha trama romântica como um trunfo, um segredo
saboreado. Há muito tempo faço do silêncio meu estilingue, meu alfinete. Deixei
que clamasse por sua solidão criativa, que usasse até argumentos, como: "A
distância revigora a relação". Sabemos que entre nós a distância já se
instalou, irrevogável.
Há seis meses entrego-me a outra pessoa. Inteira. Mariana
está casada. Meu coração se desamarra, aos poucos. Não imaginei que pudesse me
deparar com tanta novidade. Aprendemos que, nesta idade, os afetos se resfriam
e os sonhos despencam com os seios. Além do mais, sempre estranhei que o amor
surgisse de uma fonte aparentemente sem mistérios. Que o desejo pudesse saltar
assim, por um corpo tão familiar em desenhos e cheiros... em textura. Teorizava
sobre a importância das diferenças. Os contrastes mais nítidos seriam, para
mim, os que me instigariam o desejo. Desconhecia as sutis diferenças, as que
apenas intuímos sob a semelhante superfície. Quando acaricio seu corpo, tão
igual ao meu, toco regiões inusitadas da minha feminilidade. Quando nossas
saias se confundem sou mais que uma mulher. Sou tudo que não tem nome.
Desaprendo o que aprendi. Contrario o que ensinei. Sou apresentada a mim quando
ela come meus traços com suas pupilas amorosas. Seguindo seu desejo sou meu
desejo. E passo a querer nós duas. Ver-me, assim, por sua ótica de amante, é
desvelar em mim o que, sozinha, seria cegueira.
Refeito do susto, certamente você irá questionar o que um
homem teria deixado de dar a uma mulher para levá-la a procurar outra. O que
teria sido insuficiente no seu desempenho viril. Sempre você como eixo de todas
as coisas. Respondo, antecipadamente, pois exercito, nesta carta, uma crueza
necessária: o que nos afasta de alguém são sempre excessos e faltas. Nossos excessos
e nossas faltas levaram você às amantes, e a mim, ao amor. Não. Talvez a
primeira tenha sido amada. A loura falsária, a que "não era sério".
Porque foi difícil terminar no dia seguinte. O dia seguinte estendeu-se por
meses, quem sabe um ano, pelas pistas que testavam minha reincidente cegueira.
Estou apaixonada. Levo parte das roupas. Esta é apenas uma
pausa para ordenar-me. Ah... a buzina! Volto para esmiuçarmos juntos minha
partida. Para que nossos olhos se enfrentem ao menos no fim. A buzina! Tenho
que ir. O chá está quente sobre o fogão.
Prêmio Nacional Ponta
a Ponta SEPAM de Contos - 1995
Ponta Grossa / PR.