terça-feira, 12 de maio de 2015

Poema inédito de Carmen Moreno

FÁBULA DA FILHA QUE VIROU MÃE

A mãe não costura mais o vestido da menina magricela.

Que não é mais magricela nem menina: cresceu por meio século.

A mãe tornou-se filha, quando os passos ficaram miúdos e os cabelos rareados.

Mora na cama do quarto, tangenciando o centenário e seu ônus.

Entre fraldas e enfermeiras, seu sorriso ensina a filha a ser rocha.

Inútil sofrer, temer a data, enfeitá-la para partir serena e sem danos...

A morte é sempre súbita, por mais que bafeje no cangote dos relógios,

e prometa visita sob o martelo dos doutores.

Mas a dita não traz na lápide o fim anunciado:

A mãe nunca partirá, costurada que está na alma da menina,

desdobrada no seu melhor gesto,

nas palavras espalmadas aos carentes de mãe e de sonho.

A mãe não é mais a fala fluida, a casa antiga, os bordados de flor,

a samambaia chorona, o jardim.

Não rega mais as plantas, não planta.

Mas é plena plantação.


Carmen Moreno

Foto: marcadores de livro 
bordados por Carmen Castilho Cardoso 
(mãe da autora)

2 comentários:

  1. Encantador o seu texto, querida. Parabéns. Beijos, Carla Giffoni

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    1. Obrigada, Carla Giffoni. Perdão por não responder antes! Por incrível que pareça, li seu generoso comentário hoje, dois anos depois. Beijos morenos

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