CARÍCIA OU DESAMPARO*
de
Carmen Moreno
Pedra ou
ponte, a palavra costura ou aparta-me
do próximo.
No papel,
deitada sobre a página, deflagra-me
o universo.
O meu e o do
outro.
No livro, a
palavra não é ímpeto como no
improviso da fala.
No livro,
revisada, escolhida, oferece-me
apenas o perigo da beleza.
Que já é
bárbaro!
O perigo de
me impelir à ousada viagem de ver.
Ver-me, ver aquele que me escreve,
Ver aqueles que são criados por quem me
escreve.
O perigo de
ver os mundos fervilhados nas folhas...
e não ser
mais a mesma.
No livro, a
palavra só ameaça
porque me
convida a sair do lugar –- a mover-me.
A palavra,
estirada na página, só pode me
oferecer o risco do voo.
E o risco de
toda viagem, por mar,
terra ou verbo, é sempre o voo.
Portanto, a
palavra burilada do poeta,
a verve,
vertida em sílabas, do escritor,
é sempre
bem-vinda, mesmo quando ameaça.
Sobretudo
quando ameaça!
É brinquedo,
mesmo quando bélica.
Plástica,
mesmo quando revela a feiura do mundo.
Salvadora,
mesmo quando mata.
A palavra,
pregada nas páginas dos livros,
em aparente
imobilidade, está viva.
Contudo,
proferida, às vezes agrupa-se tão ágil,
que não há
tempo de retocar-lhe o rosto.
E a verdade
brota, abrupta.
E a mentira
enfeita-se, convicta.
Quando
proferida, sua ameaça tem natureza diversa
da que
deleitamos no leito da página.
Falada, a
palavra encorpa-se, cálida ou bélica.
E é carícia
ou desamparo.
No entanto,
uma vez expelida,
segue seu
curso reto, irrevogável.
E atira sem
revólver, talha sem sangue...
Mata sem
vestígios.
Mas também
tem o poder de socorrer,
com sua
saliva salvadora,
qualquer um
de nós que, na dor,
encontre
alguém com o dom de usá-la como abraço.
Qualquer um
de nós que saiba
valer-se de sua sonoridade
para adoçar
a língua e salvar alguém. Para
salvar-se.
A palavra,
quando fala, expulsa da
boca um corpo invisível.
Quando fala
a palavra é carne, é gesto.
Mas quando
cala também é forma viva.
Disfarçada
de silêncio, no fundo do pensamento,
às vezes
grita seu medo de exprimir-se, parir-se.
Grita seus
segredos, seu lixo orgânico e suas benfeitorias.
Viva, no
caos do pensamento, a palavra inventa o futuro,
retoca o
passado, e ensaia o presente –- para vivê-lo.
Mas, neste
trajeto do falar ao ouvir, pode gerar
breu ou brilho,
conforme o
berço preparado para acolhê-la.
Quem ouve é
sempre co-autor do que é dito.
A tradução
de quem ouve, seu universo
de significados e imagens,
sempre ajuda
a escrever paz ou guerra.
No entanto,
há de chegar o dia em que,
libertos de
escrúpulos e medos,
domados pelo
afeto, usaremos bem
mais a palavra como beijo.
* Livro Loja de Amores Usados de Carmen Moreno